03/12/2009

AFELICIDADE
NOVELA DE AMOR INCOMPLETO... PARA SER FELIZ

Aquele rapaz foi sempre muito atilado, cumpridor de seus deveres, escravo da sua honrada palavra, vivendo de bem com a sua consciência, sempre pregando os elementares e são princípios, podendo considerar-se, sem favor, o verdadeiro e límpido espelho da humanidade, pois, antes que se resolvesse a tomar qualquer destino, reflectia muito. Aprumado e bem posto, figurino impecável da última moda que era ditada lá de fora, não causava estranheza que o sexo feminino, tão propenso a deixar-se acarinhar e a fazer feliz quem desta maneira inconfundível procede na sua vida, lhe rendesse os mais cativantes, ternos e estudados olhares. Agora era uma loira, depois uma morena ou até morenas oxigenadas, que são as mulheres com vincados e insofismáveis temperamentos escuros mas de aspecto visivelmente claros.
Os namoros duravam apenas o máximo de trinta dias certos.
Neste escasso, mas suficiente período de estudo, a assiduidade era matemática, as palavras eram doces e vulgares como o ambiente e o caso exigem; nada de arrebatamentos ou frases grandes, frases de dar a Lua ou dar ao Céu. Tudo muito terra-a-terra e estúpido. Ainda me recordo de, em dada ocasião, num pequeno e animado baile familaiar, enlaçado numa ruiva fulminante que incendiava toda a sala e circunstantes, num dengoso e "pampanoso" tango triste, ouvi-lhe esta frase lapidar, característica e alicerçada:
– Chove lá fora. Chora o Céu lágrimas gigantes. Sinto-me no Céu e estou muito feliz.
E ela olhou-o como quem percebe e esforçou~se com naturalidade por dar-lhe maior certeza do encanto celestial.
Passaram os anos, e essa figura de homem que anteriormente descrevi, continuava na mesma, com os namoros, com a mesma vida, fiel ao mesmo princípio... e sem finalidade.
Há pouco mais de um ano encontrei-o com ar de pessoa a quem falta o ar, muito preocupado, olhando o relógio a cada momento e despedindo-se, à presa dos amigos. Não aparecia em teatros e até ao futebol, que antes não perdia por maior que a razão fosse, passou a não contar como espectador assíduo e entusiasta.
Aos domingos à noite, quando o Porto ganhava, reuniamo-nos todos à mesa do café, caras alegres, caras que não deixavam dúvidas, em grande algazarra, contando os feitos deste ou daquele, levantando o guarda-redes, os avançados, tudo o que tinha contribuindo para a grande retumbante vitória do nosso clube. Ele chegava, com uma cara muitíssimo parva, uma cara onde se lia que não se a nada e perguntava, ingénuo e indiferente:
– Vocês estão contentes... Que foi?
Um belo dia de sol lindo e céu sem nuvens, um desses dias tão claros em que apenas se pode dizer a verdade, chamei-o ao lado e inquiri que assim o transportava. Vim a saber que tinha encontrado a Felicidade., senhora de sãos e robustos princípios como o dele, que conseguiu prendê-lo mais do que a tabela, pois já durava o namoro há quatro meses. Dizia ser a mulher que o destino lhe talhara, com todos os predicados que ele idealizou e merecia.
Há coisa de dois meses desapareceu. Soube depois que tinha ido até França.
O tempo passou e, ontem, encontrava-me no café do costume, saboreando um agradável cálice de Vinho do Porto, quando se enciaxilhou nas molduras da porta, muito risonho, cheio de uma alegria que já não lhe conhecia, o meu ilustre amigo de quem tenho estado a falar.
Abraços, descrição da viagem, a vida por lá, o que se diz, etc., etc., quando me veio à mente a Felicidade. Olhei-o melhor, medi-o e disparei:
– E a Felicidade? Essa mulher que o destino te talhou?
Saudável, transpirando alegria por todo o corpo, os olhos a rir com riso sem amarras, falando com desenvoltura e sem olhar para o lado, disse:
– Olha, meu caro amigo, todos nós temos uma mulher que o destino nos impõem. Se conseguirmos escapar-lhe... teremos a verdadeira Felicidade.

in Sampaiadas de Sampaio, 1962

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